quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A questão do aborto

Drauzio Varella
 
...Embora cada um de nós tenha posição pessoal a respeito do aborto, é possível caracterizar três linhas mestras do pensamento coletivo em relação ao tema.
Há os que são contra a interrupção da gravidez em qualquer fase, porque imaginam que a alma se instale no momento em que o espermatozóide penetrou no óvulo. Segundo eles, a partir desse estágio microscópico o produto conceptual deve ser sagrado. Interromper seu desenvolvimento aos dez dias da concepção constituiria crime tão grave quanto tirar a vida de alguém aos 30 anos depois do nascimento. Para os que pensam assim, a mulher grávida é responsável pelo estado em que se encontra e deve arcar com as conseqüências de trazer o filho ao mundo, não importa em que circunstâncias.
No segundo grupo, predomina o raciocínio biológico segundo o qual o feto, até a 12a. semana de gestação, é portador de um sistema nervoso tão primitivo que não existe possibilidade de apresentar o mínimo resquício de atividade mental ou consciência. Para eles, abortamentos praticados até os três meses de gravidez deveriam ser autorizados, pela mesma razão que as leis permitem a retirada do coração de um doador acidentado cujo cérebro se tomou incapaz de recuperar a consciência.
Finalmente, o terceiro grupo atribui à fragilidade da condição humana e à habilidade da natureza em esconder das mulheres o momento da ovulação, a necessidade de adotar uma atitude pragmática: se os abortamentos acontecerão de qualquer maneira, proibidos ou não, melhor que sejam realizados por médicos, bem no início da gravidez.
Conciliar posições dispares como essas é tarefa impossível. A simples menção do assunto provoca reações tão emocionais quanto imobilizantes. Então, alheios à tragédia das mulheres que morrem no campo e nas periferias das cidades brasileiras, optamos por deixar tudo como está. E não se fala mais no assunto.
A questão do aborto está mal posta. Não é verdade que alguns sejam a favor e outros contrários a ele. Todos são contra esse tipo de solução, principalmente os milhões de mulheres que se submetem a ela anualmente por não enxergarem alternativa. É  lógico que o ideal seria instruí-las para jamais engravidarem sem deseja-lo, mas a natureza humana é mais complexa: até médicas ginecologistas ficam grávidas sem querer.
Não há princípios morais ou filosóficos que justifiquem o sofrimento e morte de tantas meninas e mães de famílias de baixa renda no Brasil. É fácil proibir o abortamento, enquanto esperamos o consenso de todos os brasileiros a respeito do instante em que a alma se instala num agrupamento de células embrionárias; quando quem está morrendo são as filhas dos outros. Os legisladores precisam abandonar a imobilidade e encarar o aborto como um problema grave de saúde pública que exige solução urgente. (Folha de são Paulo – 26.08.2000)